quinta-feira, 5 de maio de 2022

Hino Órfico a Saturno

Santo pai dos homens e dos deuses que habitam os céus,
onipotente Titã, de engenhoso pensar e dono de força prodigiosa,
que em si contém todas as coisas e que para si as devora,
acorrentado por arcanos grilhões à vastidão silente do mundo.
Saturno, pai do Tempo; Saturno, pai da Eternidade,
Filho de Gaia e Urano, o céu, povoado de estrelas.
Fonte primeira, Titã indestrutível, potestade favorável,
onipresente sobre todo o orbe, seja propício a nossos desejos,
e dê a nós, mortais, um final feliz às nossas vidas,
Dê-nos da transmigração propícia o teu altíssimo consentimento.

Explicações:

Apesar do muito que dizem por aí de Saturno, toda essa besteira proveniente da idade média e da renascença, Proclus é taxativo em afirmar que Saturno é um deus puramente intelectual, é a fonte de toda a inteligência, destarte, é o nume dos filósofos. Citando Proclus na tradução de Thomas Taylor: "...this God the first and most pure intellect. This God, therefore, is the summit of a divine intellect, and, as he ( Sócrates ) says, the purest part of it".

Mas ele não devora os filhos? Não é um deus mal, malígno?

Não, não o é. Os poetas usavam da metáfora para expressar o ciclo da vida através de Saturno. Ele dá a vida a nós, mortais, e nós a ele retornamos no momento da nossa morte para reiniciar um novo ciclo, o ciclo da geração e corrupção ou, simplesmente, o ciclo da gênese. A lembrar que, para os gregos, tudo aquilo que veio a ser, há de deixar de ser, nada escapa ao nascimento e a morte, sendo isto o que nos diferencia dos deuses, o que, porém, não significa a dissolução da alma, pelo contrário, esta continua a viver através de outras identidades. E é Saturno o nume que nos assegura a nós uma boa "reencarnação".

Portanto, esqueça o que a renascença escreve sobre Saturno. Leia mais sobre ele na magnífica obra de Platão e Proclus.

É Zeus, Deus, Jove ou Júpiter, afinal de contas?

Muitas vezes, o leitor brasileiro, procedente duma cultura católica, cristã, que tem o livro como objeto de reverência e adoração, fica confuso com os excessos de liberdade literária da cultura greco-romana.

Uma das principais dificuldades daí decorrentes refere-se aos nomes divinos, às suas funções e justa ordenação. Por exemplo, para ele Vênus é a deusa do amor e Minerva das prendas domésticas. Pois bem, fico a imaginar a sua perplexidade quando se defronta com alguma estátua de Vênus proveniente de Esparta, na qual a nume era uma deusa da guerra! Era ela designada como Afrodite Areia, ou a guerreira.

Da mesma forma, a Minerva romana, deusa dos bordados, segundo Ovídio, é referida por Homero como a “destruidora de muralhas”, a deusa que se deleita na guerra e no morticínio. Mas nosso amigo cristão trata de se defender dizendo: “mas se Palas Atena era a deusa da guerra, era a deusa da guerra justa”.
Não, não era! Não existe nenhuma noção de “guerra justa” na antiguidade. Guerra era guerra sem qualquer adjetivo. E a “deusa da guerra justa” aceita sacrifícios humanos, como fez Ulisses, ao matar um inimigo e consagrar-lhe a morte à deusa.

“Mas esses gregos e romanos não respeitam os livros, o Hesíodo?”

De fato, eles os respeitam, mas creem que foram escritos por mortais, sem qualquer “inspiração divina”. Se Homero ou Hesíodo eram cultuados pela beleza dos seus textos, por apresentarem várias facetas do reino divino, eram tidos como pessoas comuns, iguais àqueles que os liam. Portanto, se a opinião do leitor diferisse da deles, não haveria nenhum problema. Para ilustrar minha tese, veja como Platão e seus amigos dão diversas interpretações sobre a origem dos deuses no Banquete e leia a versão platônica da criação no Timaeus.

Enfim, não havia nenhuma Bíblia para os gregos e os romanos, assim a interpretação que davam aos seus e mitos era excessivamente livre para nós, que transformamos teorias e livros em verdadeiros “ídolos”.

Agora, voltado ao assunto deste escrito, como se deve chamar a um nume, pela nomenclatura grega ou romana? Tanto faz, os deus iriam entendê-lo em quaisquer dos casos, afinal são bem mais inteligentes do que nós. Ovídio, por exemplo, trata a rainha dos infernos, a Juno Avernal, tanto como Prosérpina quanto por Perséfone.

Portanto, se você juntar Zeus e Jove, Minerva e Atena ou Vênus e Afrodite numa mesma frase ou parágrafo, para um grego ou romano não haveria nenhum problema. Nenhum! Já para um indivíduo educado pela nossa academia, isso seria um erro, ou melhor dizendo, um “pecado”. Esses caras são tão fundamentalistas que até mesmo corrigem Camões ou Shakespeare, Ovídio e Virgílio!

Seja como os gregos, seja como os romanos, seja livre!